Pintora sensível às problemáticas sociais faz em suas telas uma espécie de arqueologia do imediato. Remexendo as camadas de uma região da topografia social, com a paciência de arqueóloga, ela recolhe, limpa, organiza e recompõe os fragmentos de uma prática social – o trabalho infantil – que reaparece cada vez mais na economia contemporânea, suavizada de sua violência através de discursos matizados em tons pastéis: o que justifica a exploração infantil na forma de trabalho educativo; o que sustenta que criança – pobre – trabalhando não se torna marginal/criminoso; o que diz que tirando a criança do trabalho aumenta sua miséria e da própria família. ...
O trabalho de Elisabete Trevisan nos mostra que a força expressiva da arte dá muito o que pensar.
Ela é um convite sensível que inquieta o pensamento.
Autor: Nestor M. Habkost
Professor de Filosofia na Universidade Federal de Santa Catarina, Doutor em Ciências da Linguagem pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) - Paris, França.
A modernidade acelerou o tempo e banalizou os problemas sociais. Ao longo dos últimos anos, temos visto um rápido desenvolvimento do mercado internacional, o que tem ocasionado mudanças internas nos países pobres, impostos pelos organismos internacionais, a fim de, através da diminuição do chamado “custo-trabalho”, torná-los competitivos. Como um dos resultados dessas mudanças, identifica-se um aumento significativo do trabalho infantil...
O escritor Antônio Callado, no artigo Romários se vingam do Brasil de Heródes (FSP 1994), afirma que estamos criando dois Brasis, um de costas para o outro. Um que cria com empenho e amor seus filhos, seus bichos de estimação, suas plantas. O outro, pobre, miserável, ainda meio escravo, continua produzindo filhos que continuarão escravos, já que não aprenderão a ler e escrever.
Muitos devem estar pensando se, ao invés de combater todos os tipos de trabalho infantil, não deveríamos incentivar os que integrem os meninos e as meninas pobres à sociedade, tirando-os das ruas. Temos certeza que os que assim pensam possuem a melhor das intenções. Mas fiquem atentos:
O ingresso prematuro de crianças e jovens (oriundos das camadas populares) na esfera de produção mantém estas crianças excluídas do acesso ao saber vigente, afastando assim a possibilidade de participação na cultura política dominante e inviabilizando também sua capacidade de decodificar esta cultura e a ideologia que a orienta. A exclusão escolar garante a divisão social do trabalho. Às que permanecem na escola caberá o exercício das funções intelectuais - técnicos de nível médio e superior, às outras resta o aprendizado na prática do “fazer”. O que resulta desse processo é a perpetuação das desigualdades sociais. Essas crianças, destituídas de seu direito de brincar, de explorar o mundo mágico da fantasia e dos sonhos, de pesquisar o mundo em que vivem e aprender, afinal, onde vieram parar, serão daqui a pouco adultos incapazes de contribuir para um mundo melhor através do trabalho criativo, consciente e responsável.
A miséria econômica produz a miséria cultural. A precocidade com que essas crianças são obrigadas a trabalhar – para completar a renda miserável de seus pais – representa antes de tudo a perpetuação de uma classe operária desqualificada.
A violação dos direitos das crianças deve suscitar múltiplas iniciativas de solidariedade, ações, organizações e mobilizações para exigir políticas públicas eficientes e, sobretudo, a convicção de que o resgate da dignidade humana passa pela construção de um novo modelo de sociedade. Uma sociedade democrática, que não dissocie a ética da política e da economia, e onde tenham lugar digno todos os seres humanos.
O Comitê Catarinense Independente Contra o Trabalho Infantil – um movimento social composto por pessoas e sindicato de trabalhadores – acredita ser possível erradicar o trabalho precoce, retirando as crianças dessa situação de exploração, desde que a sociedade se sensibilize para com essa causa.
E por acreditar também que a sensibilidade é atingida com mais eficácia através da arte, apoia a iniciativa de traduzir a “realidade” para uma linguagem plástica, a fim de dar visibilidade a uma situação que no cotidiano passa despercebida.
Autor: Lúcia Haigert
Mestre em Antropologia social pela Universidade Federal de Santa Catarina